domingo, 11 de janeiro de 2015

O Vale da Estranheza - Parte 1

O pequeno riacho estava particularmente calmo nessa noite fria. Uma fina nuvem de nevoeiro flutua sob a água gelada, e, por incertos mas certamente compreensíveis fenómenos atmosféricos, tingida de um azul que conferia ao espaço qualidades de uma ordem subliminar. As cigarras cantavam, um leve vento acariciava as árvores, e uma pedra torta elevada acima do nível da água fazia a mesma cantar o mais suave chapinhar. Enfim, os mais místicos fenómenos pareciam ter sido convocados por qualquer força desconhecida para aquela noite de particular poesia. Talvez fosse deus, inspirado pelo seu tédio, a experimentar e assemblar um novo microclima naquele vale esquecido entre a serra, nessa cortante noite de inverno. 

Um qualquer pássaro, certamente preto e de porte considerável, lança um pio que descobre no seu eco novas propriedades sonoras, mas antes de o mesmo ter tempo para fantasiar sobre o seu inédito repertório resolve levantar voo, desapontado: afinal era um carro que se aproximava ao longe e espalhava pela serra o som do atrito entre borracha e o alcatrão e ainda frequências mais graves, ritmadas, qualquer tema musical de sucesso. De qualquer forma, em breve toda a pauta musical daquele cenário entraria numa inesperada cadência, composta por sons de peças metálicas a rangir, vidros a partir, uma massa pesada a rebolar ao sabor das leis da física, um muro de pedra a ruir e um final estrondoso de água a chapinhar. 

Além do rio que ficou mais agitado, o tema inicial daquele idílico cenário retomou indiferente o seu compasso, enquanto um jovem humano, com o corpo quebrado, se arrastou pela gelada água até à margem do riacho onde se esforçaria por recuperar o fôlego e a consciência.

(a continuar)





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