quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O Falsificador

O energético e carregado homem perfurava avidamente pelo meio da cinzenta multidão, e chegando ao ponto mais alto da praça falou assim ao povo:

"Olhem todos! Reivindico a vossa atenção pois trago comigo um produto de inestimável valor, fruto da minha loucura! E vo-lo trago por me fascinarem vossas foices, oh amigos!"

Mas as pessoas volvendo-se para não se sabe que estranho tipo de consciência comum, prosseguem a sua dança e cochicham entre si.

"Certamente vosso Senhor é mais sábio que o meu... - lamentava o falsificador - Oh triste loucura! Perdoa-me grande desejo!"

E desfez-se em lágrimas de veneno cujo odor atraiu um homem da multidão. Vestido de branco e cheio de piedade como lhe ordenara o seu Deus aproximou-se do solitário homem e falou-lhe assim:

"Diz-me amigo, que ilusória imagem te colocou aqui em cima de onde todos te avistam?"

"De certo nasceu de semelhante ventre que neste mundo também a ti te cuspiu..." - lamentava.

"Mas sabes, - apregoava o homem de branco - talvez o sémen da tua loucura tenha sido semeado por um deus que não aprendera a falar nem escrever, ou cujas verdades simplesmente já arderam, enfim!...

"Na lareira do teu Deus, ó circuncisador!" - Gritava cheio de tristeza, ou talvez ódio, não sabia.

"Que esperavas que ele fizesse? Havia visto a Grande Verdade e aprendido a Grande Razão, a mesma que ensinou a todos os que o admiravam!"

"Chamas-lhe admiração?! Antes de conhecerem teu Deus, nesse remoto passado, já belos bailarinos eram, a poder de fome e pancada!"

"Assim nos quis a Natureza amigo, porque hás de desejar tu outra deus qualquer? Vem, eu mostro-te o caminho" - disse o homem estendendo-lhe a mão.

E recusando lamentava mais alto - "Sempre soube que os conformistas eram os mais felizes! Assim os quis a sabedoria! Essa sagrada doença, tão sagrada como o uivar dos cães! Ai! como invejo essa loucura! - e desatou a uivar, som que todos dançaram e cantaram simultaneamente. Alegre troça, assim se denominava o passo.

"Mas quem és tu afinal? - Atirava furioso o homem de branco - Um Pescador que aspira a ser Pastôr? E deseja pastar sem cão?"

"Pobre pescador! - chorava - Apenas deseja deixar o que apanhou e trazer o que não apanhou. Mas tomam-me por falsificador! Os ingratos! Os numerosos! Os Superiores, ó eterna tristeza!"

"O Eu deve ser absorvido de modo a preservar e aperfeiçoar a raça, não percebes?!" - gritava o homem de branco, o juiz, o Deus.

Mas o falsificador levantava-se agora do chão manchado de lágrimas:

"Amigos acordem! A semente dilacerada não nasce ao ver outra ser esmagada pelo mesmo peso! Não deixeis que..."

E calou-se,
voltando-se para si mesmo.

Deixara de ouvir a multidão que estrebuchava de pura e alegre malícia,
deixara de os ver,
de os reconhecer,
não estavam lá.

Nada existia.

Apenas a sua percepção sensorial,
no vazio.

E morreu ali, debaixo do corpo de que havia sido expulso.

Apenas resta a Totalidade.

O Nada.



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Passagens 1

(...) Mas afinal o que é a Verdade? A Verdade existe? A Verdade É? Poderá algo Ser não tendo consciência de si ou do mundo? Poderá algo Ser não existindo fisicamente e, por consequência, não percepcionando?
Bem... Eu digo que sim.
Afinal, quem é Deus para aquela velha senhora que todo o dia reza baixinho?
Quem é o Homem crucificado na cruz que com tanto amor carrega à volta do seu pescoço num fio de ouro?
O que é o Peixe que chega num triciclo motorizado todas as semanas à porta de sua casa?
O que São eles? São algumas das Verdades da velha e devota senhora.
E o que É este Deus, este Cristo e este Peixe para um indígena do outro canto do mesmo mundo?
(...) Vejo a Verdade como um acto inconsciente (e consequentemente Natural e Verdadeiro) de criação. A Verdade é uma conformidade entre o Animal e o Fenómeno, o princípio essencial do Ser. Parte da Experiência do fenómeno mas ultrapassa-o, chegando a realidades que o transcendem.
O "Eu" não existe antes da Verdade, nasce destas, que se começam a construir de acordo com as suas necessidades animais e com a sua experiência, influenciadas naturalmente pela natureza que o rodeia -"O Homem é a medida de todas as coisas."
Logo, a mentira ou blasfémia surge quando 2 raças de animais que habitam espaços geográficos diferentes ( e também em espaços iguais quando a população de uma certa sociedade se começa a hierarquizar egoístamente e atingir um numero populacional que impossibilita uma consciência comum, criando-se culturas dentro de culturas) entram em conflito, numa disputa pela Verdade.

Passagem de "Introspecção" - 4. Set 2010 - Pala