quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

ESAP - 3º Ano - Estética - Recensão Crítica sobre "A Sociedade do Espectáculo" de Guy Debord

Neste texto (presente no final) Guy Debord condensa alguns dos pontos chave que constituem não só os alicerces do posicionamento crítico que toma nos seus livros e filmes em relação á sociedade capitalista do Séc XX, como também os da própria Internacional Situacionista, de uma forma resumida.

A critica Debordiana resume-se á censura dos processos de controlo e dos próprios valores reivindicados pelo sistema capitalista (e pelas politicas de direita), os quais, segundo ele, são responsáveis por desumanizar a sociedade humana.


O que Debord propõe com este livro, inspirado numa vontade quase anárquica, é reconhecer os processos de controlo indirecto (o espectáculo) que a sociedade capitalista (depois da igreja o ter feito de uma forma diferente na idade média) impõe ao indivíduo e ás comunidades para, de seguida, fazer tábua rasa e reconstruir a sociedade humana fundando-a numa condição básica: o trabalho para a unidade ao invés do trabalho para a separação. Mas antes de perceber uma vontade primeiramente política nisto, é uma vontade primeiramente humanista e libertatória que move Debord, não no sentido exclusivamente indivídual, mas até mais no sentido comunitário, como é indirectamente sugerido no final deste texto: “Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento (processo de separação e mecanização), no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se reencontraram”.


Para que uma sociedade funcione plenamente, sugere Debord, não se devem recorrer a divisões (ou separações como este lhes chama) sociais nem ás mecanizações e especializações das mesmas. Observei que é possivel criar um ponte entre o que motiva Debord e o que motivou H. D. Thoreau  a isolar-se junto do lago Walden onde vivera auto-sustentávelmente e escrevera a sua obra prima com o mesmo nome do lago, ambos partilham não só a mesma vontade libertatória e emancipatória (no sentido de se reconhecer a condição de subjugação que se vive e se livrar dela), mas também apelam, de formas diferentes e mais ou menos directas, á importância do contacto com a terra, da proximidade e tomada de consciência e sentido crítico pela parte do indivíduo em matéria dos processos sociais que satisfazem as necessidades mais básicas (biológicas) ou até mais complexas (filosofia, metafísica) da sua comunidade e de si mesmo.


Antes de mais é necessário entender a que Debord se refere quando fala em “espectáculo”: Entendo que o espéctaculo para Debord se trata do conjunto dos processos de separação e alienação a que o universo capitalista submete os povos com a finalidade de os manipular a não só reconhecerem os seus valores, como a adopta-los passivamente para si mesmos, estabelecendo um pacto de ordem quase sagrada (no sentido em que este processo não é nem directo nem consciente) com esta “configuração do real”, ou como Debord diz, “condição de existência”.


O espectáculo, suspeito, tem ainda uma outra qualidade, o de não ser uma causa, mas sim uma consequência, uma consequência material e social de que nada serve aos seus criadores senão no sentido do “reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da actividade social real”. Assim, o espectáculo afigura-se como a ingénua auto-confirmação da alienação de um determinado grupo ou classe social dentro do universo capitalista. O debate e obras que se produzem neste contexto é então espectacular pois visa, segundo Debord, a “conservação da insconsciência na modificação prática das condições de existência”. Esta frase de Debord resume a natureza manipuladora de qualquer sistema politico-económico hegemónico, principalmente o capitalismo, e á luz do que ela denuncia podem ser criticados muitos aspectos da nossa sociedade.


Para perceber melhor isto é necessário perceber um outro conceito fundamental para Debord, o conceito de separação: “A separação é o alfa e o ómega do espectáculo”.
Por separação entendo os processos de fundação e estruturação de uma sociedade hegemónica, e neste caso, da capitalista moderna.


Debord aproxima-se de uma esquerda Marxista (ou até mesmo ao anarquismo) ao condenar os meios adoptados pela sociedade capitalista para o seu desenvolvimento sem limites nem obstáculos. A classicização da sociedade, a especialização de cada organismo e a acumulação de dinheiro proveniente desse trabalho especializado cria um mau funcionamento no homem: Ao desconhecer processos básicos de sobrevivência, ao deixar de perceber o impacto real e importância do seu trabalho, ao permitir que o dinheiro satizfaça cegamente todas as suas necessidades e ao permitir que alguma entidade exterior o controle e define até á essência a seu próprio gosto, o individuo permite que uma essêncial faculdade humana embruteça brutalmente, nomeadamente a sua livre vontade, o seu sentido crítico e comunitário,  e o  seu conceito de liberdade. Ainda nesta linha de pensamento, Debord diz:“As long as we are unable to make our own history, to freely create situations, our striving toward unity will give rise to other separations.”
Com isto Debord parece sugerir que uma sociedade fundada nos principios da hegemonia social, ou pelo menos unida pela mesma ávida força capitalista, trará inevitavelmente, a par das suas parcelizações e especializações, separações.


Paradoxalmente a separação/especialização social que pode ser apresentada como um ideal social democrático, no sentido em que cada cidadão trabalha e participa nas escolhas tomadas pelo governo, revela-se aos olhos dos Situacionistas como a mais sublime das formas de controlo, ou pelo menos o ponto de partida propício para tal uma vez que “The quest for a unified activity leads to the formations of new specializations”. Este controlo, contudo, já não está (somente) nas mãos dos politicos nem do governo. O resultado das separações sociais foi de tal ordem que permitiu que a “cultura do espectáculo” se autonomiza-se do universo politico para mediatizar a comunicação entre os individuos, despossando-os do seu sentido comunitário e trocando a experiência autêntica ou a verdade por imagens para se assumir como uma nova espécie de religião, onde vez de termos uma imagem de Cristo que apele á simplicidade e a uma “boa conduta” temos várias imagens que apelam ao consumo de experiências multiplas e dos mais alienantes prazeres, transformando o debate politico (estando os próprios orgãos politicos “separados” do resto da comunidade) numa pequena parte dessa grande mercadoria do espectáculo.


O espectáculo mostra, então, “o poder separado desenvolvendo-se em si próprio”, e como atrás ficou sugerido, a acumulação de poderes “separados” cria uma situação de carência que se encontra no indivíduo especializado que não sabe o que quer atingir com o seu trabalho (senão ganhar dinheiro) nem tem real noção do impacto desse mesmo trabalho na sua sociedade.


Debord admite que o mundo da arte não escapa a esta “sociedade do espectaculo” e também ela sofreu um processo de separação, como sugere o próprio nome “mundo da arte”, sugerindo uma separação com os outros “mundos”. Segundo Debord a arte ou é revolucionária ou é nada mais que os objectos produzidos num contexto comunitário “não-espectacular”. Assim as propostas artísticas que os situacionistas fazem consistem em formas que “despromovam” a “arte” consagrada pela elite artística. Mesmo depois de Duchamp ter revolucionado o mundo da Arte esta não deixou, á luz da crítica Debordiana, de ser espectacular, contudo poderá existir uma arte, ou antes, certas “situações” que podem ser consideradas Arte, no sentido em que se busca, nestas situações, a criação de algo num regime não-espectacular, isto é, produzido num contexto comunitário autónomo e onde todos os “produtores” estão em contacto profundo e comum com a mesma “realidade”, realidade essa que visaria oferecer alternativas de configurações de existência diferentes daquelas que a sociedade do espectáculo dogmatiza. Este seria um cenário, creio, onde a criação artística não só faria sentido (de acordo com a visão de Debord) como satizfaria a necessidade social e humana de aproximar individuos e se afirmar uma comunidade perante outra.  A propósito do cinema, por exemplo, verifica-se essa vontade revolucionária não só na abordagem formal dos seus filmes como também no carácter intervencionista das suas narrações, procurando exaltar o espectador para os processos “espectaculares” a que este está submetido.


“The function of the cinema, whether dramatic or documentary, is to present a false and isolated coherence as a substitute for a communication and activity that are absent. To demystify documentary cinema it is necessary to dissolve its “subject matter”.”


A grande e final questão que inevitavelmente levanto depois de Debord ter afimado que a construção de uma sociedade unificada terá, inevitavelmente, que passar por processos de separação, é: o que podemos fazer no sentido de combater a alienação e a manipulação de um sistema sobre um grupo de pessoas? É possivel que exista uma sociedade unificada “não-espectacular”, isto é, que não recorra a separações para se tornar eficaz?


Termino com a minha postura pessoal perante esta questão:
Percebe-se que a busca de uma consciência comum dentro de uma sociedade globalizada e unificada (essa pura utópia) acompanhou sempre a história da humanidade e constituíu a gênese de todas as grandes transformações sociais e de todas as grandes organizações (politicas, religiosas, etc). Contudo tal tarefa é, de facto, tornada impossível pelo espírito naturalmente crítico e emancipatório do Homem, logo, a unica forma de tal sociedade poder existir e funcionar será instituindo cultural e socialmente que a palavra “liberdade” estará directamente associada á experimentação de prazeres que a sociedade tecnológica unificada permite, a troco de trabalho e entorpecimento sublime de algumas faculdades essenciais da natureza humana. Contudo eu não me revejo nesta politica. O comunismo (utópicamente falando) propõe uma outra estratégia, que é a de basear o sentido de unificação nas iguais condições económicas, sociais e culturais dos individuos da sociedade, contudo o homem continua sujeito, e se buscamos a liberdade, busquê-mo-la até ao fim.
Para mim o Homem, ao contrário da sardinha, não foi feito para viver em grandes sociedades, acredito que o florescimento de uma mesma “realidade” comum e unificadora (baseada no principio da liberdade) só é possivel em reduzidas comunidades autónomas. A partir do momento em que uma sociedade se hierarquiza e especializa no sentido de conquistar o mundo através da tecnologia é inevitável que, fruto das separações, se criem novas “realidades” dentro da realidade, ou novas sociedades dentro das sociedades.

Assim, e uma vez que o mais manipulado dos indivíduos tem legitimidade e “liberdade” para se reconhecer como um homem livre, aceito todo o tipo de sociedades, e reconheço que a arte desempenha, no plano individual ou de pequena comunidade, o papel de afirmação e revolução satisfazendo a necessidade emancipatória do homem, e no plano “espectacular”, o papel de entretenimento e asseguramento da harmonia entre cultura social e valores económicos/mercantis. Se por um lado o segundo me desperta algum desprezo, por outro consigo perceber-lhe algum valor. No fundo é uma questão tecnológica, se queremos conquistar o universo ou se queremos ficar por cá.



segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Nota sobre a Arte

Agrada-me, mais do que uma grande execução técnica ou uma grande bagagem conceptual, a obra que seja o produto livre de uma qualquer forma de consciência emancipada, quero dizer, de uma vontade. Gosto quando esta materializa uma reconfiguração do "real" ou novas propostas do possível, refresca-me a consciência e propõe-me novas ligações. Esta é, a meu ver, a necessidade humana mais básica que a Arte satisfaz. A revolução virá, inevitável e felizmente, depois.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mini comentário sobre "Breaking the Waves" de Lars Von Trier

Um dos meus filmes favoritos do Trier é o "Breaking the Waves" de 1996.

Acho que é um filme onde se encontram presentes os principais motivos de interesse do Trier, entre os quais, como em "Ninfomaníaca", a pulsão sexual como vontade maior da acção humana (lembrando-nos das teorias psicanalíticas de Freud). Emily Watson é fantástica e o trabalho de câmara muito inventivo, livre, quase romântico.


Gosto particularmente deste filme pelos elementos que este coloca em jogo, entre os quais um que artisticamente me seduz particularmente, que é a questão da "verdade" e de como os choques e pontos de divergência dos vários sistemas simbólicos como a religião, a cultura popular, o capitalismo, colocam o Homem numa condição de liberdade condicionada pelas exigências morais e éticas de tais sistemas (ilustrado pelo percurso de sofrimento de Jen, a personagem principal). 


Mas Trier vai ainda mais longe e com esta personagem de Jen (mentalmente "atrasada") propõem-nos uma interessante postura crítica perante a religião (cristianismo e derivações protestantes) enquanto instituição maior de controlo da conduta humana, por um lado, e por outro a experiência mística. Seria fácil e limitador apenas ler na ingénua devoção de Jen uma condição de subjugação e ignorância. Essa força que a move (que a certo momento se confunde se é Deus ou o desejo sexual) efectivamente move-a no sentido emancipatório de satisfazer os seus desejos e os do seu "próximo" (o marido), contrariando todos os sistemas que a rodeiam, o que levanta algumas uma questões politicas e filosóficas muito interessantes:


"Até que ponto precisamos de confirmação cientifica para acreditar-mos legitimamente em algo?"; 

"Será a vontade do "ignorante" tão ou mais importante que a do "sábio"?"

Estas questões evidenciam uma paixão pelo lado poético da vida, assim como o amor pela liberdade em Trier, questões que fazem falta a este mundo civilizado, institucionalizado, especializado, tecnológico, cada vez mais abstémio de vivências poéticas e místicas, cada vez mais "domesticado" pela cultura do espectáculo capitalista que Debord fala, um mundo onde "... por grandeza material, todos os confortos celestiais se desvanecem em ar" - Chapman